sexta-feira, 2 de maio de 2025

Suzy

Ela estava sentada no chão, encostada contra a parede... Lágrimas rolando até a ponta de seu nariz (onde se misturavam ao sangue que dele escorria) e despencando avermelhadas no carpet amarelo-desbotado. A cabeça baixa entre as pernas semiabertas abraçadas pouco abaixo dos joelhos.
Ele, talvez percebendo ter exagerado (ou ao menos fingindo ter se dado conta), abaixou-se próximo à ela e ergueu-lhe levemene a cabeça.
Ela olhou-o nos olhos por um instante, mas logo desviou o olhar. Ele continuou a fitá-la por algum tempo, enquanto escolhia as palavras certas para dizer.

- Olha Suzy... Você sabe que faço isso para seu bem, não sabe?

Ela olhou para o canto da parede e permaneceu em silêncio, com seu olho direito envolto por uma mancha em tom "avermelhado que amanhã será roxo", o nariz sangrando e uma forte dor no estômago, que foi onde iniciou-se a seqüência de golpes.

Suzy tinha 25 e era prostituta desde os 15.
 A primeira vez em que se "deitou" com um homem, foi aos 12. "Tio" Jóca... Ela nunca nunca mais esqueceria.
Jóca não era exatamente seu tio; era um vizinho muito amigo da família.

Suzy nasceu em um bairro pobre (filha de pobres que eram filhos de pobres que eram filhos de pobres...) e tinha muitos desejos, que nunca se realizavam.
Naquele dia (em que completava 12 anos), pediu aos pais uma boneca "Suzy" (e aqui esclareço que não sei o verdadeiro nome da garota... Só o adotado aos quinze, quando começou na "vida"), mas ganhou apenas um abraço e um beijo envergonhados por não estar acompanhados da boneca (apesar de tudo, recebia muito carinho... o que possivelmente ajudou a definir o caminho que seguiu). Passou horas chorando em seu quarto... Tio Jóca entrou sem bater, com a boneca embrulhada em papel brilhante em suas mãos. Os olhos da menina nunca antes haviam brilhado daquela forma...
Naquela noite Suzy teve um desejo realizado... mas o preço foi sua inocência.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

O Glorioso Culto Bilíngue da Prosperidade Involuntária


 Voltei a vê-lo.

O profetinha.

Agora homem feito — ou quase.
Terno apertado no bíceps, gel modelando a fé no topo da cabeça.
A Bíblia sagrada com capa de couro personalizada:
"Minister OFF THE KING - Volume da Revelação Celestial, Edição Profética de Mão de Obra Gratuita."

No meio da feira, em frente ao açougue, uma caixa de som com eco falso amplificava sua voz como se Deus tivesse investido em JBL.

Ele subiu num caixote, ergueu os braços e soltou a primeira rajada:

“BRODERS AND SISTERSSSS… TODAY IS THE DAY OF THE VICTORY!!!
ALELUIA!!”

“GLÓRIA AO DEUS DE PROMESSA QUE NUNCA ATRASA O BOLETO DO CÉU!!”

Puxou uma respiração carregada de revelação:

“THE BLESSING IS IN THE CORNER, JUST WAIT THE SIGNATURE OF THE HOLY DELIVERY!!!”

“GLÓRIA! GLÓRIA TRÊS VEZES!! QUEM NÃO GRITA, NÃO ACREDITA!!”

A multidão crescia.
Duas senhoras choravam, um entregador filmava, e uma criança segurava um cartaz:
“RECEBA A CHAVE DO APÊ ESPIRITUAL!!”

E então, como se invocado por meme ancestral,
ele entrou no transe absoluto da língua revelada:

“OFF THE KING!!!
THE POWER DEMENDER!!!
THE BEST!!!
THE KING!!!
THE FERY DES NAY!!!”

“GLÓRIA! CHAMA NA FOGUEIRA DA REDENÇÃO!!
DEUS NÃO FALHA, MAS O PECADOR TÁ NO MUNDO!!”

O ajudante, suando e sambando, passava a sacolinha das ofertas com uma agilidade pentecostal.
Estava escrito: “QUEM PLANTA, GANHA LUGAR NA FILA VIP DO PARAÍSO.”

A plateia gritava.
O profeta cuspia sílabas entrecortadas como se a língua do Senhor tivesse travado o cache:

“DO NOT LET THE BLESS PASS BY YOUR SALVATION!
O TEMPO DA HUMILHAÇÃO ACABOU — É GLÓRIA COM CASHBACK!!!”

“RECEBE! VIRA PRA QUEM TÁ DO LADO E DIZ: O DEUS DO INGLÊS TÁ TE VISITANDO!”

E por fim, ele ergueu os dois braços, esticou o pescoço, e fez a proclamação final, já possuído por um mix de gospel, grito e glitch de consciência:

“THE LORD IS MY PASSWORD!!
AND THE HEAVEN IS LOGGED IN!!
LOGUE A SUA FÉ, IRMÃO!!
THE FIRE… IS… IN THE GLORY!!!”

“E QUEM NÃO DIZ AMÉM…
QUE DIGITE DE NOVO!!”

E ali, na feira do bairro, com cheiro de linguiça e revelação no ar,
o céu ficou, de fato, mais perto.
Ou, pelo menos, mais barulhento.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

The King - Origins


The King - Origins

Ele devia ter uns onze anos.
Gravata torta, terno herdado de algum tio falecido e uma Bíblia rasgada embaixo do braço — dessas de plástico, que já viu mais suor que fé.

Se instalou num ponto de ônibus às 10h da manhã,
ligou uma caixinha de som com playback de culto americano e começou:

"ALELUYA GLOURY TO THE KINGS… THE FERY IS COMING! OBEY THE POWER DEMENDER!!"

Alguns passantes jogaram moedas.
Outros riram.
Eu fiquei.

Porque o menino falava com a segurança de quem nunca leu o texto,
mas decorou o tom.

Chamava as pessoas de "irmãos" com aquele R mastigado de dente mole.
Tremia as mãos com convicção de show gospel.
E gritava como quem compete com o trânsito —
ou com a própria dúvida.

"HOJE É O DIA DA VITÓRIA… OF THE LORDE… NÃO O DE HOJE, MAS O DE SEMPRE!"

Dava pra ver que ele inventava metade na hora.
As frases vinham em línguas estranhas,
misturando inglês de meme, português de rodoviária e sotaque de falso profeta mirim.

"RECEBE! THE BLESSING! VAI CAIR O FIRE OF THE HEAVENLY NIGHT!"

Alguns paravam pra filmar.
Outros desviavam como quem foge de criança vendendo bala com versículo.

Mas eu fiquei.
Porque entre uma mentira e outra, o menino vacilava.
O olho caía.
A voz falhava.
E por um segundo,
surgia uma verdade ali.
Miúda, suada e meio sem saber o que fazer com ela.

"É ISSO, IRMÃO… THE LIFE IS NOT GOOD, BUT THE FAITH IS PRETENDING!"

Eu ouvi aquilo e soube:
ele não era um profeta.
Era só mais um tentando enganar o mundo
antes que o mundo enganasse ele de volta.

E sinceramente?
Respeitei.